Do campo ao pote: a doce jornada do mel
As colmeias nos campos Gerais, cuidadas pelo apicultor Geraldo

“Pensei que abelha era só pra produzir mel e ferroar a gente...”, lembra Geraldo, enquanto inspeciona suas colmeias espalhadas no meio das árvores da propriedade. A frase, que arranca risadas, revela um olhar curioso sobre esses insetos. Para os pequenos produtores, porém, cada abelha é parte vital de um trabalho essencial, que mantém a biodiversidade e garante a produção agrícola local.
Ninguém sabe direito de onde elas vieram nem pra onde vão. As abelhas surgiram há mais de 125 milhões de anos, a partir de vespas predadoras que trocaram a caça de insetos por néctar e pólen, ainda na era dos dinossauros. Fósseis datados de 100 milhões de anos, encontrados em âmbar na antiga Birmânia, mostram abelhas ancestrais com as patinhas cobertas de pólen, prova de que, desde lá, já cumpriam sua missão: polinizar flores e perpetuar a vida. Atravessaram eras, glaciações, migrações de continentes e chegaram intactas aos nossos dias.
As abelhas europeias chegaram ao Brasil no século XIX, trazidas por colonizadores e jesuítas a partir de 1838, com a intenção de iniciar a apicultura no país. O padre Antônio Carneiro foi um dos grandes incentivadores da atividade. Mais tarde, em 1956, vieram as abelhas africanas. E, por volta de 1970, com o cruzamento entre as africanas e as europeias, surgiu a abelha africanizada, que aumentou a produtividade de mel e cera, tornando a apicultura uma importante fonte de renda para muitas famílias.
A principal preocupação dos cientistas hoje é o declínio das populações de abelhas, que ameaça a segurança alimentar, a biodiversidade e a estabilidade dos ecossistemas. Ainda assim, elas seguem firmes, carregando consigo o mistério e a força da criação. Cruzam campos, pousam em flores, recolhem o néctar invisível e, com ele, mantêm o equilíbrio que faz a natureza prosperar: polinizam a terra, multiplicam os frutos e produzem o doce mais antigo da humanidade.
As abelhas desafiam até a física, suas asas são pequenas demais pro corpo robusto, mas batem com tanta velocidade que o impossível vira rotina. Voam como se não existisse gravidade. Uma operária vive, em média, 45 dias, mas pode visitar até duas mil flores por dia. Pra produzir 1 kg de mel, são necessárias cerca de 40 mil abelhas, que juntas percorrem uma distância equivalente a três voltas na Terra. Elas se comunicam por meio de danças, movimentos circulares ou em forma de oito.
Num enxame com milhares de indivíduos, reina uma sociedade perfeita. As operárias constroem os favos, coletam pólen, alimentam as larvas e defendem a colmeia; os zangões existem pra fecundar a rainha; e a rainha, mãe de todos, é capaz de botar até dois mil ovos por dia.
Dentro da colmeia, tudo é calculado com precisão. Os favos, em formato hexagonal, não são obra do acaso, essa geometria permite maior armazenamento e economia de cera, uma perfeição matemática que engenheiros e arquitetos estudam com admiração.
A importância das abelhas vai muito além do mel. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), cerca de 75% das culturas agrícolas do mundo dependem da polinização. Sem elas, alimentos como maçãs, morangos, café, amêndoas, soja e tantos outros desapareceriam ou se tornariam raros e caros. Proteger as abelhas é tão necessário quanto proteger as nascentes e as matas ciliares.
Albert Einstein, embora sem registros concretos, é frequentemente citado por ter dito: “Se as abelhas desaparecerem da face da Terra, a humanidade terá apenas quatro anos de existência.” A frase resume bem a importância vital da polinização. Monteiro Lobato também observou, com sabedoria: “Quanto mais conheço os homens, mais aprecio as abelhas.”
O Brasil é hoje um dos maiores exportadores de mel orgânico do mundo. O bioma brasileiro, especialmente o semiárido nordestino, oferece condições ideais para a apicultura. O Piauí está entre os principais produtores de mel do país. A atividade se espalha por todo o território nacional, favorecida pela imensa diversidade da flora, que garante alimento abundante para as abelhas.
Pequenos apicultores e cooperativas são responsáveis pela maior parte da produção de mel, cera, própolis e geleia real. Políticas públicas, por meio do Sebrae e do Senar, oferecem treinamento, orientação técnica e apoio financeiro aos produtores.
É nesse cenário que conhecemos o apicultor Geraldo, que há mais de três anos trabalha com abelhas em Entre Rios de Minas (MG). Nascido na zona rural, ele teve desde cedo contato com o campo. Mais tarde, mudou-se para Belo Horizonte, onde fez carreira na indústria. Após se aposentar, voltou às origens: dedicou-se à apicultura, unindo a experiência urbana com o amor pela terra.
Entrevista com o apicultor Geraldo
– Como começou seu interesse pela apicultura e o que motivou a seguir nessa atividade?
– “Quando eu morava na roça, lá pros anos de 1970 e 1980, no Catucas, em Itaguara, minha família tinha o costume de tirar favos de mel pra consumo da casa, pra tratar gripe, infecção de garganta e outras doenças. As abelhas faziam colmeias em cupinzeiros, ou nos buracos que o tatu-canastra cavava pra comer os cupins. Era ali que elas achavam um abrigo bom pra fazer o ninho, ou então em tronco de árvore.
Meu pai e meus irmãos saíam com uma lamparina, e minha mãe arrumava uns trapos de roupa velha pra gente queimar na boca do buraco das abelhas. A gente achava que era pra espantar elas, mas hoje sei que aquilo era pra acalmar as bichinhas. Naquele tempo não existia roupa de apicultor nem fumegador. A gente quebrava o cupinzeiro e tirava os favos de mel. Ali mesmo comia um pouco, e o resto levava pra casa.
Minha mãe colocava tudo num balde, espremia os favos e guardava o mel em garrafas de vidro com rolha de cortiça. Era um remédio especial. Quando alguém gripava, ela fazia chá de mel com folha de laranja. Minha tia Cecília, mulher do Nhô do Zeca, tinha problema no pulmão; aí mamãe fazia chá de hortelã com uma boa colherada de mel. Era santo remédio!
Quando o caso era mais sério, o senhor Vandi, farmacêutico lá de Itaguara, vinha de jipe até as roças pra aplicar a famosa benzetacil, que doía uma semana! Acho que a gente até esquecia a doença de tanta dor (risos). Ele também trazia xaropes e comprimidos. Era tiro e queda.
Essas lembranças ficaram gravadas na minha cabeça. Depois mudei pra Belo Horizonte e deixei essa vida de lado. Só em 2020, já aposentado, conheci um senhor em Entre Rios de Minas que tinha um apiário. Pedi pra conhecer o manejo e vi que era tudo diferente daquela prática antiga lá da roça. Aprendi que é preciso conhecimento e respeito com o ciclo de vida das abelhas. Desde então, passei a enxergá-las com outros olhos. Naquele tempo, eu achava que abelha era só pra dar mel e ferroar quem mexia com elas. Hoje sei que esses bichinhos têm um papel enorme na natureza, na medicina e na economia das famílias.”
– Como as mudanças climáticas e o uso de agrotóxicos afetam as colmeias?
– “Hoje a gente vê diferença demais. Antigamente, os enxames ficavam em pastos, troncos, cupinzeiros, fendas de rochas... A retirada do mel era rústica, e muitas vezes destruía tudo. Com o desmatamento e as queimadas, as abelhas se desorientam e acabam migrando pras cidades, o que aumenta o risco de ataques. Quando uma abelha ferroa, libera um feromônio que chama as outras pra defender a colmeia. Esmagar uma abelha pode virar sinal de perigo e provocar um ataque coletivo. Mas elas são danadas: sabem direitinho onde é a casa delas, mesmo a quilômetros de distância. Se guiam pelo sol e por pontos de referência.”
– Quais cuidados são necessários pra manter uma colônia saudável e produtiva?
– “Tem que cuidar direitinho, arrumar um lugar sossegado, perto de flores e água; não mexer em dia frio; olhar se a rainha tá bem, se não tem formiga nem traça dentro da colmeia.”
– Qual a importância dos pequenos produtores pra preservação das abelhas?
– “Os pequenos produtores espalham colmeias nos cantos mais tranquilos da propriedade, longe de barulho e de veneno. Assim, as abelhas trabalham em paz, polinizam as plantas e ajudam a natureza a se manter viva.”
– Que mensagem deixaria pra quem quer começar na apicultura?
– “Pra entrar nesse mundo das abelhas, o mais importante é respeitar a natureza. Tem que usar os equipamentos certos, aprender as técnicas e cuidar das colmeias com paciência. A apicultura exige respeito, dedicação e amor pelas abelhas.”
As abelhas têm um papel essencial no meio ambiente. Ao pousar nas flores, carregam o pólen que fecunda outras plantas, garantindo frutos e sementes. Enquanto elas continuarem voando de flor em flor, haverá esperança, de flores, de frutos e de vida.
Cada colmeia é um pequeno universo, um lembrete de que a natureza vive em equilíbrio quando é respeitada.
Proteger as abelhas é proteger a própria existência humana, é cuidar do amanhã enquanto se aprecia a doçura do mel.
Nos zumbidos de suas asas, as guardiãs da natureza continuam a encher o mundo de cores, aromas, doces e vida.
Por Antonio de Paula Oliveira